sábado, 29 de outubro de 2011

Aposta

(…)
― Notei que ultimamente você tem pensado muito ― para não dizer excessivamente ― na morte e na existência em geral.
― Sim, é um exercício interessante, apesar de nem sempre ser agradável. Na verdade, é bem raro não ser espinhoso.
― Por que não para, então?
― Já tentei, mas acho que não consigo. Tenho a sensação de que estou negligenciando alguma coisa de suma importância, quando tento viver sem refletir sobre essas coisas. Além do mais, acho que a longo prazo pode ser bom.
― Como assim?
― Tenho a impressão de que a maioria das pessoas só vai pensar seriamente na morte e nas questões adjacentes quando já está no fim da vida. Estou apostando que pensar nisso agora vai ser uma ajuda para eu me situar nas atividades humanas e entender o significado das minhas ações dentro delas.
― E se você perder essa aposta?
― Se eu perder, o que terei será uma vida inteira turvada por uma mente cheia de raciocínios tortuosos e ineficazes.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Somos alimento

― Que bichinhos interessantes. O que são?
― Artêmias. São crustáceos primitivos.
― Por que comprou?
― Estou fazendo um patê para dar de alimento aos meus peixes. Elas entram na mistura por último, ainda vivas.
― Você não sente pena ao matá-las só para que sirvam de alimento?
― E você acha que todos morremos para alguma outra coisa?

quinta-feira, 2 de junho de 2011

O futuro

(…)
― É engraçado a gente pensar isso de nascer, viver e morrer, né?
― Como assim?
― Bem, é no mínimo curioso que nós existamos, razoavelmente conscientes do mundo, e não consigamos encontrar um porquê para tudo isso. É quase como se nós fôssemos "presenteados" com a oportunidade de pensar o mundo sob o preço de saber que um dia morreremos e perderemos essa consciência.
― Vejo esse período de "produtividade" como algo que fazemos para o futuro, e não consigo não pensar no George Orwell a esse respeito.
― Por que Orwell, especificamente?
― Porque ele escreveu 1984 pressuroso para concluir o romance antes da morte. Ele finalizou o texto ciente de que não viveria para ver as considerações a respeito dele que viriam nas semanas, anos e décadas seguintes à sua publicação. Da mesma forma, nós, que produzimos o que quer que seja, o fazemos em um determinado contexto, conscientes ou não de que seremos criticados e "superados" um dia. "Nós somos os mortos", como o próprio Orwell coloca nas palavras do herói, porque jamais chegaremos a ver tudo que será alicerçado ou associado ao que fazemos e pensamos.
― Então você acha que, no fundo, a gente existe para as gerações futuras?
― Sim. Como os helênicos ainda são discutidos mais de dois milênios após o seu apogeu, nós seremos discutidos, estudados e deixados para trás (no sentido  histórico, sendo inseridos num determinado contexto e lembrados como referências "a serem pensadas"). Devido às mudanças do ponto de vista epistemológico, o que se faz e fala num determinado período tem potencialmente infinitas interpretações futuras. As conseqüências do que produzimos possuem uma ínfima fração dentro do nosso próprio período de vida. Somos, em essência, futuros seres históricos.

domingo, 8 de maio de 2011

O medo de morrer

― A última coisa que eu quero sentir é medo: medo da morte e medo do futuro. O medo da morte é o sentimento de encarar o fim, e o medo do futuro é o medo do que será das coisas que eu vou deixar no mundo.
― Mas isso parece deprimente. Por que não esperar uma morte com algum conforto e segurança?
― Sentir medo do fim deve significar, de certa forma, que eu tenho algum apego pela vida; e sentir medo do futuro significaria que eu tive capacidade de começar a produzir coisas novas, ao invés de simplesmente ficar na apatia esperando a morte. Afinal, é um grande conforto diante do fim.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Detalhes

— Por que você passa tanto tempo observando esse seu aquário?
— Porque me encanta como um sistema tão pequeno, montado por mim, é capaz de me mostrar algo novo todos os dias. Cada dia eu noto um traço de comportamento dos peixes, do desenvolvimento das plantas, do equilíbrio biológico; algo que estava lá e que eu não havia notado, ou que vai mudando aos poucos. Aliás, acho que isso acontece com quase tudo que é familiar.
— Como assim?
— Pode notar que as coisas mais familiares pra nós são, normalmente, aquelas a que a gente presta menos atenção. Me diverte ver como cada releitura traz à luz algum detalhe que antes passara despercebido.

Respeito pela vida

(…)
— Respeito pela vida não significa idolatrar ou não matar. A morte alimenta a vida, é um ciclo do qual a gente não pode escapar. Respeito significa não causar morte e/ou sofrimento desnecessários, nem se comprazer com essas coisas. Por isso acho que o vegetarianismo que tem como objetivo boicotar a engorda e abate de animais é sem sentido. Uma coisa é ter uma atitude contra o desperdício de carne (e de qualquer tipo de alimento), o que é louvável; outra, bem diferente, é abominar o consumo de qualquer tipo de carne só porque ela já foi viva.
(…)

Os sistemas de pensamento

(…)
— Mas, se tem uma coisa que me deixa triste, é como muita gente por aí defende a Ciência de forma tão passional.
— Qual o problema em defendê-la?
— Bem, vai contra os princípios dela mesma. O grande diferencial da Ciência é a sujeição que as idéias têm à discussão e descarte, por mais antigas que sejam. Defendê-las com unhas e dentes é irracional, é avesso ao método científico. É bom que saibamos onde ela e os outros sistemas de pensamento humanos estão situados ao decidirmos falar sobre este ou aquele, e que deixemos nossos preconceitos pessoais em segundo plano ao tratar de tal assunto.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Animais e crianças

(…)
— Acho que uma das melhores formas de se passar o tempo é interagindo com animais e crianças.
— Por quê?
― Gosto de observar como agem. As pessoas adultas em geral são ponderadas em suas atitudes, e não costumam pensar em certas coisas aparentemente óbvias demais para serem consideradas. As crianças freqüentemente dizem coisas que vão direto nos nossos alicerces culturais e nos lembram da fragilidade estrutural deles. Já os animais me chamam atenção pelas reações de medo, alegria, etc. A identificação que tenho com elas me é um ótimo lembrete de que, por mais raciocínio lógico e tecnologia que tenhamos ou por mais intensos que nossos estados de espíritos possam ser, somos afinal tão animais e tão vivos quanto eles.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Arte religiosa

— 'Tá ouvindo música de igreja, é?, haha.
— Sim. É a Missa em Si Menor, de Bach.
— Pensei que você, mais que todos que conheço, tivesse aversão a religiosidade.
— Tenho; mas isso não me impede de apreciar uma composição maravilhosa como Christe Eleison.
— Mas a Missa e muitas outras produções artísticas são resultado da devoção de seus autores, não?
— Claro. São pequenas jóias em forma de sons, cores e formas, mas o preço que a humanidade pagou por elas foi alto demais: irracionalidade e injustiça durante muitos séculos, e os vestígios ainda estão presentes atualmente. Se a Igreja Católica não tivesse existido, muito sangue teria sido poupado nos livros de História e provavelmente não teríamos estas jóias.
— Pois é. Eu preferiria que o sangue tivesse sido poupado, mesmo que hoje não tivéssemos essas produções.
— Eu também. Mas se você já pagou por uma jóia muito boa e descobriu que ela não valia tudo isso, a decisão mais acertada seria continuar usufruindo dela e tomar cuidado para que os abusos não voltem a acontecer no futuro, não?

Poder

(…)
— Não entendo a fixação que certas pessoas têm por dinheiro e poder aquisitivo.
— Vai dizer que você acha que dinheiro não é importante?
— Não que eu não ache importante; apenas acho que não deve ser o foco nas nossas vidas.
— Ha, você diz isso porque nunca passou necessidade.
― Não foi isso que quis dizer. Acho que ter e/ou ganhar dinheiro é bom, mas ele não deve ser uma finalidade. Digo, ele nos permite o luxo de darmos atenção ao nosso crescimento cultural e pessoal, mas apenas se for uma ferramenta para o cultivo de trabalhos, estudos e hobbies saudáveis. Acho que a obtenção de bens e poder aquisitivo como uma meta torna-se um ciclo vicioso em que a pessoa não usufrui daquilo que conquistou pois nunca parece ter o suficiente. Poder adquirir cada vez mais sem jamais fazê-lo.